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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Estávamos tão chapados e procuramos um lugar pra sentar e só. No limite da cidade, fomos até uma estação de trem que estava inutilizada há anos. Havia uns três ou quatro trens estancados lá e ninguém sequer pensava mais neles. Não havíamos comido nada o dia inteiro, mas não ligávamos, estávamos chapados e felizes com nossa própria companhia.

Sentei em um vagão aberto. O lugar que estávamos era um morro que, dependendo de como você olhasse, era possível ver toda a cidade de lá de cima. Todas as luzes e tudo funcionando regularmente. Parei pra olhar a mata que crescia em torno de todo aquele canto. As folhas estavam amarelas e havia vários besouros por lá. Clara ainda estava rodando o lugar, procurando um canto agradável pra acender seu cigarro de palha. Continuei olhando fixamente para a mata e, Deus, como eu estava chapado. 

Foi quando eu tive a chance de ver uma das cenas mais bizarras que toda a natureza já viu. Na minha frente um sapo começou a pular freneticamente em círculos enquanto dois besouros pairavam em cima dele e quando o sapo se aquietou os dois besouros o prenderam na tentativa de o matar. Dois besouros pequenos matando um sapo enorme. Eu me sentia em um rodeio, era a platéia daquela carnificina que a natureza pôs em frente aos meus olhos. Parecia que estava olhando em câmera lenta o pobre sapo morrer e eu permanecia estático, como se não pudesse nem devesse fazer nada. 

Quis chamar Clara para observar aquilo comigo mas eu simplesmente não podia. Ou não conseguia. Não foi preciso, de qualquer forma, ela veio até mim com seu cigarro já no final e olhou espantada para a cena. "Por que você não faz nada?!" perguntou. "Eu não sei, parece certo, apesar de errado". Ela ficou indignada com minha resposta simplória. Do sapo só restava os pequenos ossos. "Nunca tinha ouvido falar de besouros carnívoros" disse e olhei para ela. Ela sentou-se ao meu lado no vagão vazio e deu uma tragada que parecia infinita na sua ponta de cigarro. Ela tragava de um jeito meigo e soltava a fumaça como se estivesse em chamas por dentro. Aquilo me enlouquecia.

"Bom, acabamos de presenciar uma cena triste e incrível que jamais teremos a chance de ver de novo." Ela balançava as pernas e olhava para os besouros que ainda sobrevoavam o lugar. "E você tem certeza que só acredita mesmo em seleção natural?" me perguntou rindo; eu assenti com a cabeça. "Há coisas demais pra se acreditar. Eu provaria nesse momento que seleção natural não é tudo que você acredita". Quis que ela provasse. Ela olhou pro meu relógio e perguntou "Que horas são?", "O relógio está quebrado, uso ele porque... ah, simbólico". "Tá, então que horas você acha que devem ser agora?". Eu não fazia idéia do que ela queria com isso. "Não faço idéia, provavelmente umas cinco." Ela deu uma risada que me incomodou. "Está vendo? É claro que você acredita em outras coisas!" Não consegui entender nada e ela me entendeu e sorriu e começou uma grande conversação em que dizia que era óbvio que, partindo do pressuposto que eu entendia e conhecia as horas, os minutos e os segundos como são, eu acreditava em algo maior: o tempo. 

O tempo estava passando devagar e a noite ia, mansinha, cobrindo o dia. Eu vivia durante o dia... e durante a noite, amava.