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quinta-feira, 22 de março de 2012

Fechou o livro. Percorreu uma última vez as singelas palavras que marcavam a contra-capa e soltou a respiração por um breve momento. Guardou seu marca-páginas na gaveta embaixo da mesa. Aquele gesto significava que mais um percurso, se não acabava, tinha seu caminho já desenhado para o fim. Estava pronta. Depois de meses preenchidos com dias devagar, horas pesadas e minutos arrastados, tinha em si que estava pronta. Levantou-se da cadeira , apoiando os dedos do pé no chão e se espreguiçou demoradamente, na tentativa de expulsar a tensão que aprisionava seu corpo. Olhou mais uma vez para a pilha de livros que, numa inércia contente, repousavam sobre sua mesa. Tinham sido enfim boas companhias, os livros; mas não era de todo o mal vê-los todos lidos: suas vidas úteis terminavam agora. Colocou a bolsa desbotada no ombro e seguiu em direção ao corredor.

Porém antes mesmo de começar a descer as escadas, percebeu a agitação que vinha da cozinha. A irmã alertava ao pai que tinha urgência de estudar para uma prova. Passou pela porta e olhou para ambos. "Estou de saída." Ao que o pai mordeu os lábios e arregalou os olhos, como se subitamente tivesse lembrado de algo que flechou sua memória. O estado de saúde de seu pai não era dos melhores e há pouco tempo atrás, começaram a investigar o que era aquela doença que o fazia ter ataques repentinos de tosse. "Não vai dar", sussurrou com tristeza, "minha consulta é agora. Você terá de ficar com sua irmã".

Sua irmã era um tipo ímpar; desde muito pequena, sofria de ataques de pânico quando ficava sozinha: tinha alucinações com assassinatos e grandes sequestros, o que os pais consideravam como muito grave, apesar de nunca terem tentado buscar uma solução em algum método terapêutico. O que faziam era nunca deixá-la sozinha, com a certeza de que o não-enfrentamento da situação poderia resultar em seu esquecimento. Ilusão.

Olhou para a irmã que estava perturbada. Ela sabia que a situação acabara de gerar um desconforto geral: a irmã mais velha tinha uma prova de admissão, para qual havia estudado tortuosos meses, e o pai havia marcado sem más intenções uma consulta emergencial no mesmo horário. De repente se sentiu encurralada e uma breve emoção esquentou a parte de trás de seus olhos. Abriu a boca querendo falar, mas o pai perguntou antes "Você vai ficar, não?". Era um absurdo russo a situação em que se encontrava e de repente sentiu seu mundo se apequenar e uma breve raiva se apoderou de sua mão direita, que empurrou a porta contra a parede, causando um barulho tremendo. O gato do vizinho berromiou. "NÃO POSSO! Eu..." sua voz tremeu e a boca tinha uma temperatura quente. A garganta implorava pra que a soltassem. O pai engoliu o berro da filha, "Não tenho culpa. Você fica". Era um pai negligente partidário. E ela sabia que o partido dele com certeza não era o dela. "É CLARO que é sua! Você sabia!" virou-se para a irmã, "E por que você não cresce LOGO?". Assustaram-se. Em verdade, ela também se assustou e recuou um passo para trás. Sabia o que estava por vir. O pai direcionou-se a ela, parando em sua frente. Tirou o chinelo dos pés.

Subiu em direção ao seu quarto com passos tão pesados que toda a escada parecia se deformar diante de seus olhos. Estava completamente atordoada. Sua bochecha esquerda ardia e tinha um pouco de terra. Passou a mão em seu rosto e soltou um pequeno chiado, como quisesse ela mesma tentar se acalmar. "Mais uma vez". Duas lágrimas sincronizadas largaram seus olhos, carregando um pouco da sujeira que tinha em seu rosto. Não queria, mas já estava aos prantos. O queixo tremia. Os braços se entrelaçaram, como se precisasse de seu próprio abraço amigo. Não conseguia respirar. Soluçou e chiou. "Calma, calma". A verdade é que aquela situação, em adversos contextos, parecia não deixar de se repetir. Que calma que é cura para um male de compaixão? Acalmou-se. Olhou para o relógio em cima da pilha dos livros. Dizem que tanto o riso quanto o sofrimento começam pela quebra de uma expectativa tensa e são a última tentativa do corpo de alívio emocional. Mas de que havia de rir, se a cada tiquetaquear do relógio, sua expectativa se dobrava num desespero tão pouco gracioso?


E dos males humanos, não há mal mais belo que os próprios laços humanos, ainda que seja deles o mais triste. Que o mal do laço não é quando se estreita, quando está bem firme e numa perfeita harmonia, mas sim quando se solta e o perde sua função: quando tudo que mais se quer é que, afinal, desamarremo-nos e  percamo-nos a sós no Universo de nosso íntimo.

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